quinta-feira, 23 de setembro de 2004

"É UMA TRISTEZA"


O padre de origem italiana Paulino Baldassari tem 79 anos, mas já vive no Acre há 46 anos. Ele acaba de ser condecorado pelo governador Jorge Viana com a Ordem da Estrela do Acre, no grau de Grande Oficial.

“Se medalhas pudessem me levar para o céu, eu já estaria no céu por causa das tantas que recebi na vida”, reagiu com elegância Baldassari após a condecoração, ocorrida na semana em que Sena Madureira comemora 100 anos.

Paulino Baldassari está mais preocupado mesmo é com a situação dos índios, seringueiros e com o perigo de destruição das matas do Acre e não acredita em manejo florestal.

Contra Baldassari estão grandes e pequenos proprietários rurais que querem continuar queimando ou explorando madeira. “Eu te digo: é uma tristeza! Eu falo, grito, denuncio. O Anselmo Forneck, chefe do Ibama no Acre é muito meu amigo. Eu chamo ele até a meia-noite e digo: dê um jeito porque não é possível continuar como está”.

Leia a entrevista a seguir:

Padre, o que o senhor anda fazendo?
O meu trabalho continua sendo muito variado. Continuo fazendo aquele trabalho antigo, das longas viagens pelos rios, que são conhecidas como desobrigas.

Qual foi sua última viagem?
Foi uma viagem às comunidades indígenas dos kulina e dos kaxinawa no Alto Purus.

Como estão essas comunidades?
Pode-se dizer que teve um progresso também lá, mas a gente não chegou mesmo a conservar a própria cultura e torná-los independente das más influências. O alcoolismo predomina e estragou muito o trabalho que fiz.

A que o senhor atribui isso?
À ganância. Eu dei às comunidades indígenas, com dinheiro dos meus amigos da Itália, um pouco de gado. O gado estava prosperando e uma das comunidades chegou a ter 54 cabeças. Neste ano, constatei que havia apenas cinco cabeças de gado. O resto, venderam tudo em troca de álcool. Não foi em troca de cachaça, mas de álcool mesmo, o que é ainda mais grave. Claro que me sinto um pouco triste por causa disso, mas pode haver uma recuperação.

Como ocorre essa ganância?
Vendem uma caixa de álcool por um boi. Como o litro de álcool custa R$ 1,00, o lucro é estrondoso. Constatei lá o embarque de três cabeças de gado e em troca tinham dado aos índios um toca-disco velho e álcool. Diante disso, não quis permanecer lá com eles. Já estou muito velho. Eu trabalhava com eles no roçado, em tudo o que eles faziam. Imaginava que eles já tinham uma certa possibilidade de independência.

O senhor evangeliza ou entende que os índios devem seguir com a cosmogonia ou mitos imemoriais?
O evangelho pode viver na cultura indígena. Com os kulina eu dava e eles me davam, especialmente no sentido comunitário. Trabalhávamos, pescávamos e brincávamos juntos. Isso aqui já são qualidades evangélicas. Isso se estendia ao sentido da família, ao respeito da criança. Nunca vi um kulina bater numa criança. Os kulina fazem o fogo para assar macaxeira, carne, peixe. Eu vi uma criança se aproximar do fogo e queimar o dedo ao tentar pegar um pedaço de peixe. Ela correu para a mãe a chorar. Sabe qual foi a reação da mãe? Pediu que a criança fosse buscar o pedaço de peixe novamente. A criança foi buscar e se queimou novamente. Voltou chorando para a mãe, que outra vez recomendou que a criança fosse retirar o pedaço de peixe. Então a criança não foi mais ao fogo. Ela estava ensinando que a criança deve aprender com a experiência da vida. Ela fez isso sem bater e sem frustrar.

O senhor alguma vez já tomou ayahuasca durante essas suas andanças pelas comunidades indígenas?
Não, porém vi várias vezes eles tomarem a ayahuasca. A bebida, em certa quantidade, pode ser um remédio. Não tomei porque obedeço ao meu bispo senão eu tomava mesmo. Do jeito que eu comia morcegos, ratos, macacos e jacarés, assim eu teria tomado a ayahuasca com os índios para ter uma idéia de como é.

Desses 46 anos de Acre, existe algo que o senhor considera mais marcante?
Eu não saberia dizer. Talvez a experiência mais marcante é que tive contatos com tantas mentalidades e que me senti bem no meio dessa mentalidade seringueira, índia, dos sírios-libaneses que chegavam aqui. A mentalidade de me sentir bem com negros. O meu maior amigo aqui em Sena Madureira era um negro que me construiu 56 escolas. Ele era um grande amigo, quando eu ficava triste... Ele se chamava Macaúba. Ele era amigo e amava os índios e trabalhava com eles. Então eu me perguntava: como a gente pode ter raiva de negros? Era um homem de coração tão grande, tão alegre. Quando eu tinha alguma dificuldade corria lá com ele, com a esposa dele. Lembro de um dia, viajando no Puru, o rio seco, e eu me lastimando que aquilo não era vida. O Macaúba me disse: “Que nada! Ta vendo praia mais bonita que essa? Daqui a pouco o tracajá vai sair e nós vamos ter comida”. Estávamos transportando uma serraria. Eu estava com os pés arrebentados de tanto empurrar o barco, mas o Macaúba estava sempre alegre.

O antropólogo Terri Aquino conta que certa vez o senhor deu uma bofetada no rosto dele quando pregava sobre o amor durante uma viagem que fizeram juntos. O senhor recorda disso?
Sim, eu lembro. Mas era de brincadeira. Estou acostumado a fazer assim com todos. Quando alguém é muito amigo eu dou logo um soco. É uma expressão um pouco bruta, mas quando eu me dou com amigos, mesmo em praça pública, dou um soco para um e outro. Para o Terry eu disse: cala a boca e dei um tapa. O Terry fez uma viagem longa comigo, que durou dois meses.


O Terri foi muito importante para a demarcação das terras indígenas do Acre? Eu só digo que ele amava os índios. Ele tinha amor aos índios. Mas quanto à religião, não combinava muito comigo.

Quer dizer então que, enquanto o senhor evangelizava, o Terri tomava ayahuasca?
É isso. Ele tomava mesmo ayahuasca.

Nos últimos dias, o Acre tem permanecido sob uma densa nuvem de fumaça. Como o senhor avalia o processo de ocupação em curso na Amazônia?
Estou lutando continuamente. A minha esperança, sempre que escrevo ao senador Tião Viana... Bem, quando é errado é errado e eu escrevo. Eu falo da realidade dos índios, da realidade das restrições da mata.

E o manejo florestal?
Eu não concordo com o manejo porque é uma manipulação. Eles dizem que é assim, mas depois manipulam. Não acredito no manejo mesmo não. Eles não respeitam nada, não. Eles derrubam tudo. Depois, fica a capoeira, que será vendida aos fazendeiros, que tocam fogo para fazer pasto para os bois. Eu te digo: é uma tristeza! Eu falo, grito, denuncio. O Anselmo Forneck, chefe do Ibama no Acre é muito meu amigo. Eu chamo ele até a meia-noite e digo: dê um jeito porque não é possível continuar como está.

Padre, a situação não é fácil?
Não é mesmo. Eu tenho todos contra. Os pequenos dizem que querem matá-los de fome porque não permitem mais que destruam as matas para fazer roçados. Os grandes também dizem a mesma coisa. Eu só digo porque alguém tem que sentar e dizer: a mata não pode ser destruída. Existe tanto dinheiro na mata. Então que se retire a riqueza dela, mas que se mantenha o seringueiro. A mata tem uma riqueza tão grande que amanhã essa riqueza pode ser estragada. Antes devemos fazer parar os canhões e depois tratar de paz. Temos que acabar com a destruição no mundo mais absoluto, de pequeno e de grande, e sentar e definir o dinheiro para conservar a mata, para desfrutar da mata sem derrubá-la.

Qual a avaliação que o senhor faz do governo da floresta nesse aspecto?
Eu sempre procurei alertá-lo quanto à destruição da mata. Nesse ano não veio helicóptero para fiscalizar e isso desanima um pouco a gente. Desanima, mas não dá para desistir.

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