segunda-feira, 13 de novembro de 2006

SÍTIO ARQUEOLÓGICO

Pelas últimas notícias deste blog, a situação exige ações enérgicas e imediatas para deter a destruição em andamento

Mário José de Lima


Os denominados geoglifos, desenhos sobre amplas superfícies terrestres, notabilizaram-se por existências tais como as de Nazca, no Perú, e dos formados nos trigais na Inglaterra. No caso peruano, são desenhos gigantescos que se estendem sobre regiões montanhosas, sobre os quais as primeiras referências datam de 1547. O caso inglês tem outra referência: são desenhos produzidos na atualidade, que surgem da noite para o dia, em trigais, o que termina por acender a imaginação dos que sonham com visitantes extraterrestres.

Desde os anos 60, Erich Von Däniken deu aos seus estudos arqueológicos um rumo que se revelou um rico filão editorial: associou descobertas arqueológicas a uma origem alienígena. Em Nazca, Von Däninken encontrou em muitas imagens semelhanças com homens de capacetes de astronautas e às marcas no chão foi dado o sentido de sinalizadores para a movimentação de aeronaves. A existência de relações com informações astronômicas contribuiu em muito para dar asas à imaginação de Von Däniken. As marcas dos trigais ingleses, que surgem até hoje, às quais ainda a nada se pode atribuir a confecção – existem apenas hipóteses e suspeitas – a associação com fatos extranormais é o resultado mais natural.

Por volta dos anos finais da década de 70, circulavam, em Rio Branco, notícias de umas valas que se dava como trincheiras escavadas durante da Revolução Acreana, luta armada que levou a incorporação da região acreana ao território brasileiro. Esta interpretação resultava da descoberta de alguns cartuchos metálicos e maleta (s) também metálica usada para transporte de cartuchos. Essa visão das valas manteve-se por algum tempo, até que o processo de desflorestamento alcança de forma mais intensa a região. Retirada a cobertura vegetal, as valas se mostraram como marcas de perímetros delineando caprichosas formas geométricas de extensão considerável que se espalham por uma ampla área ao longo do eixo do Rio Acre.

A partir do momento em que foi permitida a visão integral de cada figura – são quadrados, retângulos, círculos, isolados e em combinação – a interpretação encaminhou-se para uma reformulação. As formas geométricas desencadeiam um exercício de analogia: em Nazca existem “desenhos” e desenhos são geoglifos, as valas no Acre também formam desenhos, logo, também são geoglifos (ainda continuamos a agir como nossos ancestrais: não conhecendo a origem partimos para a pura analogia).

Esse deslocamento no eixo das interpretações e a nova denominação abriram espaços para um rumo um pouco complicado para os destinos desse sítio arqueológico. A analogia cobrou um custo para o tratamento da descoberta.

Quanto mais se desloca de práticas realistas e apoiadas e recomendadas pela metodologia científica, quanto mais fantásticas, as explicações se tornam objeto de maior interesse da imprensa. Por outro lado, quanto maior a divulgação, maiores os efeitos para a formação de novas celebridades e na concessão de generosos espaços em jornais, revistas e televisão para entrevistas. Forma-se um círculo vicioso com esses interesses se entrecruzando e se retro-alimentando. Círculo vicioso na medida em que em nada se contribui para dar conseqüência ao que se pode entender como sítio arqueológico, fonte de testemunhos e evidências de atividades do passado histórico, onde incidem e se desdobram as atividades de uma disciplina científica: a arqueologia.

Os rumos dados ao sítio acreano têm na recente reportagem realizada pela revista Época o exemplo acabado desse comportamento descomprometido. O texto da revista incorre num exercício de realismo mágico ao apoiar-se em afirmações fantásticas e sem qualquer referência aos levantamentos ou qualquer outro ponto de apoio. O exemplo da revista, que não é único, não labora com base em hipóteses, mas em afirmações. Algumas afirmações meio cômicas, como a que diz que a construção das valas desenvolveu-se “sem auxílio de pás ou pircaretas”. Existe uma série de afirmações impossíveis de serem sustentadas pelas evidências colhidas, direta ou indiretamente, seja no sítio ou de outros elementos da História. E por esse caminho vão sendo envolvidos nomes e instituições num turbilhão de puras e descabidas invencionices que levam a uma falsa compreensão do sentido e da importância do sítio. As principais referências que são os estudos já completados simplesmente desaparecem.

O estágio atual dos estudos realizados no sítio arqueológico acreano já permite formular a hipótese de que se trata de locais onde se processaram assentamentos humanos. Em escavações foram encontrados fragmentos de cerâmica que podem levar a essa formulação. Ou seja, mesmo no nível atual, quando ainda se trabalha com poucas evidências já se abrem portas para uma nova interpretação capaz de colocar a região no mapa dos territórios de alguma sociedade em nível de civilização superior aos identificados nas populações encontradas na fase da ocupação da região pela economia da borracha ou dos quais se tenha notícia através dos escritos de viajantes que circularam na região, desde a fase colonial.

Ao se combinar tais informações com as descobertas sobre possíveis sistemas de cidades construídos pelos incas, podemos ser levados à consideração de uma possível relação entre o sítio acreano e a civilização incaica. Mas é preciso avançar no levantamento do sítio para identificarmos melhor tal possibilidade. Os incas eram exímios construtores e capazes de dar usos extraordinários às pedras, elemento inexistente na região. Pelas informações que pude colher, ainda não existem evidências sobre edificações no sítio. Esse fato pode explicar que as valas podem ser vistas como elementos de defesa, mais do que qualquer outra coisa. Há indícios ou, até mesmo, registros, dos incas como povo guerreiro. Por outro lado, a destruição pela qual passou o império incaico, depois da invasão européia, pode ter resultado em migrações que alcançaram a região acreana.

Formulações dessa natureza, combinando informações da história do Altiplano até à planície amazônica, são possíveis e poderão levantar importantes dicas sobre o papel, não apenas do Acre, mas que a Região Amazônica desempenha nesse movimento mais geral da História do Continente. Pouco ou nenhum interesse podem ter exercícios de realismo fantástico para os quais fomos levados com a classificação do sítio arqueológico acreano como geoglifos. O máximo que se pode esperar de comportamentos descolados de uma sólida fundamentação científica será a formação de um véu mistificador sobre um tema que, desde já, podemos concluir ser importante para uma datação e caracterização histórica das populações regionais.

Hoje nos caberia, como sociedade portadora do compromisso com a história da região, a formação de grupos de pressão pela criação de mecanismos protetores do sítio acreano e do fortalecimento de grupos de pesquisas nas instituições regionais de estudos e pesquisas às quais deveria interessar o estudo sistemático dos conteúdos de tais achados. Pelas últimas notícias deste blog, a situação exige mesmo ações enérgicas e imediatas de defesa do sítio, com o objetivo de deter o processo de destruição em andamento. Isto é um interesse da sociedade acreana, real proprietária do sítio arqueológico.


O acreano Mário Lima é professor de economia da PUC-SP. Exerça a cidadania ou florestania, como preferem alguns: exija do Ministério Público do Acre e do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que colaborem com a defesa dos geoglifos. Para enviar mensagem, clique em MPE e Iphan.

2 comentários:

Anônimo disse...

Altino,

Na próxima semana apresentarei o requerimento de instalação da Sessão Especial para tratar dos Geoglifos. Estou sugerindo que seja em março de 2007. Haverá mais valorização do tema e mais tempo para organizá-la. Vamos definir um pequeno grupo de trabalho para definir a organização. Conto com você! Um abraço. Dep. Moisés Diniz.

Anônimo disse...

Gostei. O tratamento científico nos ajuda a manter os pés no chão. Sim, devemos pressionar as instituições para que "façam alguma coisa". Mas devemos continuar chamando de geoglifos?