quarta-feira, 4 de abril de 2007

A CARA DO CONFLITO


Michelle Portela

Altino, quanta felicidade por ter visto o Varadouro - um jornal das selvas - no capítulo de ontem da minissérie "Amazônia - De Galvez a Chico Mendes". Sabia que iria aparecer, mas foi enorme a emoção de ver, mesmo que ficcionalmente, o Elson Martins na ativa, com máquina fotográfica na mão, entrevistando Wilson Pinheiro, na assembléia de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O próprio Elson apareceu no vídeo. Mais incrível ainda, foi ver a representação dos personagens também retratados nos textos do jornal das selvas, com o qual tenho convivido há mais de um ano, como João Maia. Até ri imaginando o Elson dizer “Mas, olha!!”, depois de ouvir – na minissérie – um pecuarista dizer: “Esse Elson e esse Silvio Martinello devem ser comunistas”.

Digo que convivo com o Varadouro porque atualmente estudo o jornal das selvas no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia, na Universidade Federal do Amazonas. Antes, porém, dei início à pesquisa acerca do jornal na especialização em “Desenvolvimento Sustentável, Políticas Públicas e ‘Comunidades Tradicionais’ na Amazônia”, oferecido pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA). Sou orientanda do Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida, que atuou no Acre no mesmo período junto aos movimentos sociais, parceiro de Terry Vale de Aquino e Carlos Walter.

Citei a fala do pecuarista para tentar apresentar como o Varadouro, ícone do jornalismo alternativo na Amazônia, incomodou e modificou realidades ao mostrar a cara do conflito vivido pelos trabalhadores rurais extrativistas acreanos na década de 1970, contribuindo decisivamente para a organização do movimento social rural em torno dos sindicados, um marco para a organização dos povos acreano. Com a criação dos sindicatos, o Acre passou a viver uma intensa fase de transformações sociais. A luta dos seringueiros, posseiros e colonos atingiu outros patamares, deixou de ser individualizada para se tornar coletiva e institucionalmente reconhecida, transformada em ação sindical.

Apenas por isso, Glória Perez já acertou em cheio ao mostrar a cobertura de fundação daquele que se tornaria emblemático à luta dos movimentos sociais rurais, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais Extrativistas de Xapuri.

Essa estreita relação entre a redação do jornal e o movimento estava relacionada às bases de fundação do Varadouro, que tinha na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e na Igreja Católica, no Acre, por intermédio de João Maia e Dom Moacir, respectivamente, suas principais articuladoras. A redação era formada por jornalistas e intelectuais que faziam oposição ao regime militar vigente: Elson Martins, Silvio Martinello, Arquilau de Castro Melo, Abrahim Farhat (Lhé), Célia Pedrina, Antonio Marmo, Terri Vale de Aquino e muitos outros. Todos sem salário!

Ao distinguir os temas do conflito sócio-ecológico no Acre do período em que circulou, o Varadouro identificou os grupos e sujeitos sociais que construíram a unidade em torno da “identidade”, favoreceram a criação de momentos propícios a uma possível transformação social, no que foi chamado de “resistência” à “invasão” dos “paulistas” em terminado período do processo de ocupação da Amazônia (Operação Amazônia, 1966). Ao oferecer uma visão de Acre de acordo com os interesses de uma classe social, desta vez, não da dominante, mas sim dos que classificou como os “pobres do Acre”, o jornal das selvas teve participação relevante na história da democratização da informação no Brasil e mais diretamente, na Amazônia.

No conjunto das edições, o jornal retratou um período de transformação do ponto de vista dos pobres e em seu próprio tempo, nos dando uma visão ampla sobre o Acre da década de 1970 e nos alertando sobre as escolhas a serem tomadas. O Varadouro fez a sua; não desconsiderou as desigualdades que persistem, de fato, no espaço acreano, mas optou por evidenciar que a expansão do capitalismo na região não implicava na homogeneização do espaço, mas sim na articulação de diferenças, com base nas fontes concretas da diferenciação. O jornal demonstrou sobriedade ao interpretar a mudança enquanto resultado da mobilização social em defesa da floresta e de seus habitantes, que entre as categorias ficou conhecido como “resistência”.

Para o jornal, foi o movimento indígena que articulou e liderou a resistência ao avanço da exploração madeireira e agropecuária do Acre, durante os chamados “anos de chumbo”, articulando o que mais tarde viria ser chamada de Aliança dos Povos da Floresta. Os índios começaram e fortaleceram a resistência à “ganância dos paulistas” e por esse feito, deveriam ser reconhecidos pelos homens brancos. O jornalista especializado era o antropólogo Terri Valle.

Porém, além de denunciar e buscar a retratação histórica, o Varadouro avançou na discussão na questão indígena, cobrando insistentemente a delimitação das terras indígenas dos caxinawá, como forma de garantia de território para sobrevivência desse povo, onde poderiam reproduzir sua cultura sem pressão externa.

A questão ambiental passou a ser interpretada enquanto questão ecológica, do ponto de vista eco-social, ao qual estavam relacionadas a questão indígena e a da terra. A idéia inicial, apesar de não muito clara quanto à estratégia de desenvolvimento e política pública, estava ligada à compatibilização entre crescimento econômico, melhoria da qualidade de vida e preservação do meio ambiente. Era preciso garantir a posse da terra às “povos tradicionais”, como garantia de delimitação de espaço de sobrevivência para s diferentes categorias.

O jornal também reproduziu em suas páginas o pensamento dos “patrões” e seus empregados, quando conseguia entrevistar os personagens envolvidos nos conflitos. Estas entrevistas mostram o quanto os “paulistas” - assim eram chamados os “invasores” -, estavam dispostos a usar da violência para obter a propriedade das terras acreanas. No meu trabalho, até me arrisco a chamar parte desses paulistas de retirantes, uma vez que a política de ocupação da Amazônia (Operação Amazônia, 1966) tinha objetivo de oferecer subempregos à massa de excluídos do sul e sudeste do Brasil - além da terra fácil pros ricos -.

Quanto ao contexto midiático, a fundação do Varadouro é resultado da preocupação dos movimentos sociais preocupados em ter um veículo de comunicação próprio, uma vez que não podiam contar com a mídia local na construção de suas representações. Estes veículos pertenciam a membros das classes dominantes, que por sua vez, cumpriam o papel de encenadores da realidade social e política do Acre e acabavam por deformá-la, a interesse desse grupo específico. Fabricavam coletivamente representações sociais, que mesmo estando afastadas da realidade, perduravam. Ao reforçar julgamentos espontâneos, essa mídia mobilizava e redobrava prejulgamentos sobre assuntos “dignos” de cobertura.

Ao fortalecer esse movimento que encontrou na identidade o modo de organização política e social do grupo, o Varadouro foi além das funções tradicionais do Jornalismo, em sua missão de “informar”, mas cumpriu seu papel de jornalismo alternativo e de interesse público. No meu trabalho, o conceito utilizado para definir o Varadouro enquanto um produto de jornalismo alternativo parte do princípio de que um jornal voltado para a comunidade se insere num contexto social e econômico que o coloca no espectro de uma “imprensa alternativa”, termo comumente utilizado para designar o produto da mídia diferenciado pela forma, e/ou conteúdo, e/ou dimensões.

Saudações e acompanhe o conflito em Amazônia!

Um beijo.

Michelle Portela é jornalista amazonense. O tema do projeto dela é “O Varadouro – Jornalismo Alternativo, categorias e representações sociais no Acre”, que será apresentado no Intercom Norte 2007, de 20 a 22 de junho. em Belém (PA).

Nenhum comentário: