segunda-feira, 9 de julho de 2007

ÍNDIOS ISOLADOS DO ACRE E SEUS TERRITÓRIOS

José Carlos dos Reis Meirelles

Nas cabeceiras dos rios Acre, Iaco, Chandless, Purús, Envira e Juruá, nas terras firmes, que nunca alagam devido à proximidade da Cordilheira dos Andes, antes da chegada do homem branco, habitavam inúmeros povos indígenas, sendo a maioria de etnia pano e aruak. As aldeias, dos que não eram nômades, eram construídas longe da calha dos rios maiores, nas cabeceiras de pequenos igarapés, isentos das nuvens de piuns, maruins, catuquis e carapanãs que infestam as margens dos grandes rios. A moradia longe das águas grandes, ao longo do tempo, cria uma cultura de terra firme, de caçadores que têm mais intimidade com a mata do que com os rios, de povos que não usam canoas, que só cruzam os rios na época da seca, limitando sua ocupação territorial na época das chuvas.

A fertilidade das terras firmes das cabeceiras propicia aos povos sedentários a possibilidade de desenvolver uma agricultura muito rica, composta basicamente de banana, mandioca, amendoim, cará, inhame, várias espécies de batatas, milho, urucum, e tantas outras domesticadas e melhoradas pelo cultivo seletivo. A caça farta o ano todo e o peixe na época da seca, aliados aos produtos cultivados, proporcionou a estes povos condições de guardadas as devidas proporções, terem uma densidade populacional alta.

A maioria desses índios utilizava o caucho, um elastômero natural, retirado da árvore do mesmo nome, produzindo vários artefatos. A descoberta pelo homem branco desta matéria prima, que poderia ter milhares de utilidades, vai modificar radicalmente a vida dos índios. A exploração do caucho é predatória, pois as árvores são derrubadas para serem sangradas, excetuando-se as mais novas que eram aneladas (retiro da casca em forma de anel, no caule). Com o início da exploração caucheira o território de vários povos indígenas foi invadido e houve reações. Os caucheiros utilizaram vários grupos indígenas contatados, principalmente os Ashaninka, para expulsar e matar todos os grupos que iam sendo encontrados pela expansão da frente caucheira.

Tivemos oportunidade de trabalhar durante nove anos com o povo Jamináua, nas cabeceiras do rio Iaco, e tivemos o privilégio de ouvir os relatos dos mais velhos, todos remanescentes do tempo em que viviam sem contato com o homem branco, de como foi o encontro com os caucheiros, e o que isso representou em suas vidas. Este povo vivia nas cabeceiras das bacias do Juruá e Purús. O primeiro contato que tiveram com um homem branco foi através de um rifle 44 Winchester, o famoso papo amarelo, usado pelo 7º de Cavalaria do General Custer para matar índios nos Estados Unidos, testado e aprovado, mudou de mãos e agora era largamente usado contra os índios da Amazônia Ocidental.

O povo Jamináua perdeu uma quantidade incalculável de homens, mulheres e crianças, massacrados pelos caucheiros e começaram a caçá-los para roubar rifles 44 e poder guerrear de igual para igual. Segundo eles, quanto mais caucheiros matavam, mais apareciam, como bandos de formigas. Com a população de guerreiros reduzida, com pouca comida, pois não havia tempo de cultivar os roçados, correndo de um lado para outro, sempre fugindo, resolveram se entregar, nas cabeceiras do rio Purús, a um caucheiro peruano chamado Dodô Meireles.

Fatores
O sarampo acabou matando mais que o rifle 44 e a população se reduziu a menos de 300 pessoas, de um povo que podia ser contados aos milhares. Trabalharam muitos anos para este caucheiro e cansados de serem explorados, se mudaram para o rio Iaco, para serem explorados pela empresa seringalista no seringal Petrópolis em território brasileiro. Só uma pequena parte do povo jamináua não quis se entregar e talvez vivam até hoje, isolados, entre as cabeceiras do Purús e Juruá, ocupando parte de seu antigo território, entre o Brasil e o Peru.

Os jamináua foram encurralados por duas frentes. Uma caucheira peruana, descendo os rios e a empresa seringalista , fixando os seringais, subindo os rios do lado brasileiro. Esta compressão os levou ao contato e quase a extinção. O mesmo ocorreu com os kaxinauá, madijá (kulina), machineri, apurinã, katukina que entraram em contato e muitos outros povos que se extinguiram antes de entrar para nossa história.

Então como é possível que, ainda hoje, existam povos isolados nesta região? A explicação é um conjunto de fatores que, raras vezes na história, conspiraram a favor dos grupos que conseguiram se isolarem nas cabeceiras destes rios.

- A exploração do caucho, por ser predatória, é itinerante e passageira. Esgotados os recursos naturais ela migra para outras áreas. Os índios que conseguiram se esconder dos caucheiros por um tempo, voltaram a ocupar seus antigos territórios.

- Subindo os rios a empresa seringalista ia dizimando ou entrando em contato com os índios que encontrava. Dizimando, na época áurea da borracha, quando um seringueiro produzia mais riqueza só cortando seringa e sendo abastecido de toda mercadoria e alimentação para que não gastasse seu tempo em outra atividade. Entrando em contato, quando o preço da borracha caiu no mercado internacional pelo fato da oferta do produto oriundo dos seringais de cultivo na Malásia, plantados pelos ingleses. Agora os índios agricultores iriam abastecer os seringais de cereais, caça e peixe. Mata-los, neste novo quadro, dava prejuízo. É graças à queda do preço da borracha no mercado internacional que vários grupos indígenas da Amazônia ocidental sobreviveram.

- Nas cabeceiras dos rios a seringueira vai ficando escassa ou desaparece. Os seringais subiram os rios até onde existia seringa, deixando entre eles e as cabeceiras dos rios, uma região sem a presença do branco, refúgio dos povos isolados.

- Os últimos seringais das cabeceiras dos rios que faziam limite com os povos isolados, mantinham sempre a seus serviços, grupos de homens especializados em matar índios “brabos” que vez por outra tentavam retomar seus antigos territórios. Eram as famosas correrias, matanças organizadas e sistemáticas, financiadas pela empresa seringalista. Após a segunda guerra mundial o preço da borracha vai caindo ano após ano, até que no final de década de 1960 e na de 1970, quando os seringais foram vendidos a grandes grupos agropecuários do sul do país e se acabaram como tais. As fazendas não deram certo e a guerra aos povos isolados terminou, por pura falta de financiamento. Ninguém fornecia armas nem pagava mais nada para se matar índios.

Etnoambiental
Os povos isolados, livres das matanças e ameaças, aos poucos se recompõem populacionalmente e iniciam a retomada de seus territórios tradicionais. Mas encontram, fixados neles pela empresa seringalista, outros índios, que usam roupa, espingardas e moram em casas como os antigos invasores brancos.

É o caso dos Kaxinauá do rio Jordão, dos Ashaninka e Kulina do Envira, dos Jamináua e Machineri do rio Iaco. Esta proximidade e disputa territorial iniciam uma nova fase de conflitos de índios versus índios, principalmente nas cabeceiras dos rios Envira e Tarauacá. Os isolados retomando seus territórios tradicionais e os contatados achando que os brabos devem ser amansados, ou mortos, reproduzindo assim o mesmo discurso de seus antigos patrões seringalistas. Estes conflitos se acirram em 1986 e 1987, fato que gera uma demanda dos índios à FUNAI, para que esta crie uma frente de atração para amansar os brabos e por fim aos conflitos.

Em 1988 a FUNAI cria o Departamento de Índios Isolados que traça uma nova política para os povos isolados. Fundamentalmente esta política se resume em proteger estes povos em seus territórios, sem contatá-los. De acordo com esta nova postura é criada a Frente de Atração Rio Jordão, hoje a Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira, para tentar por fim aos conflitos nos rios Tarauacá e Envira, envolvendo povos isolados, Kaxinauá, Kulina e Ashaninka. Fomos convidados para assumir a chefia desta unidade e lá permanecemos até hoje. Os conflitos foram resolvidos quando conseguimos fazer os Ashaninka, Kulina e Kaxinauá entenderem que assim como eles, os parentes brabos também tinham direito a suas terras e principalmente de continuarem brabos.

Mas o grande salto de qualidade no trabalho deu-se em função da FUNAI poder demarcar terras para povos isolados, sem contata-los. Nas cabeceiras dos rios Envira e Tarauacá, existem hoje três Terras Indígenas para povos isolados. As TIS. Kampa e Isolados do Envira, Alto Tarauacá e Riozinho do Alto Envira, esta última em fase final de regularização, faltando somente a demarcação física. Estas três terras indígenas somam 636.384 hectares, e nelas habitam três povos isolados distintos. Dois povos sedentários e um nômade. Outras tantas terras estão demarcadas pelo Brasil para povos isolados. O trabalho da Frente Envira se resume na preservação do território dos índios isolados que habitam estas terras, mantendo-os livres para decidir seu futuro e seu modo de vida. Se um contato vier a ocorrer não será por nossa iniciativa.

Não foi nada fácil convencer o Estado Brasileiro a admitir cidadãos que ele não pode controlar principalmente cidadãos que não respeitam nem a fronteira internacional Brasil – Peru, vivendo lá e cá, sem dar satisfações a ninguém. Do lado brasileiro, no estado do Acre, praticamente toda fronteira é constituída de áreas de preservação. Se não são terras indígenas são parques, áreas de conservação, ou reservas extrativistas, proporcionando aos índios, seringueiros, à floresta, à fauna e flora, uma grande área contínua, com condições reais de preservação etnoambiental.

Deserto
Infelizmente no início deste ano o nosso pessoal da frente Envira começa a perceber pranchas serradas de mogno descendo o rio Envira nos repiquetes característicos da época chuvosa. As cabeceiras do Envira voltam a ser exploradas pelos peruanos, depois de um século, na extração do mogno. O que ocorreu foi uma grande enchente que roubou as pranchas estocadas na beira do rio e dos igarapés e estas desceram e tiveram mão em território brasileiro. Denunciamos o fato a Funai e ao governo Peruano e a instituições internacionais como a Survival. O fato é que esta exploração ilegal de madeira, em grande escala, está provocando a migração forçada de grupos isolados para o território brasileiro, o que muito nos envaideceria se não soubéssemos que esta migração poderá gerar conflitos entre estes povos isolados com índios e seringueiros do lado brasileiro. Além disso, o grande povo isolado masko é inimigo tradicional dos grupos de etnia pano, que ano passado passaram o tempo das chuvas no Envira brasileiro, coisa nunca antes constatada. As aldeias dos povos isolados sedentários do lado brasileiro tem aumentado em tamanho e quantidade, numa velocidade que só pode ser explicada por migração de seus parentes do lado peruano. Pode estar ocorrendo disputa de território de caça entre índios isolados com conseqüências que só os urubus podem contar e nós apenas supor.

Houve conversações entre a Funai e instituições peruanas, organizações não governamentais e antropólogos preocupados com a questão. O desafio é manter a mesma política dos dois lados da fronteira. A questão extrapola a esfera de competência da Funai, que em algum momento terá que envolver o Ministério de Relações Exteriores, pois trata-se de relações entre dois países.

A grande região formada pelas cabeceiras de três dos maiores tributários do rio Amazonas, os rios Madeira, Juruá e Purús em território peruano somada à região de fronteira do Estado do Acre é um complexo de mais de dez milhões de hectares. Argumentos para sua preservação não faltam. Ela abriga as cabeceiras do Madeira, Juruá e Purús, além da maior população de povos isolados do planeta. Seu relevo acidentado, pela proximidade dos Andes, cria um regime de escoamento das chuvas muito rápido, os chamados repiquetes, que são a subida de três a quatro metros do nível dos rios em poucas horas. O terreno acidentado é impróprio para agricultura. Qualquer interferência neste delicado ecossistema terá conseqüências desastrosas.

Mais uma vez o homem branco se lança atabalhoadamente sobre este grande espaço amazônico, sem medir as conseqüências. A exploração do caucho passou, da seringa faliu, das agropecuárias não deu certo. Agora é a vez do aguano, como é tratado o mogno pelos patrícios peruanos. Se por ventura a exploração madeireira não se limitar ao mogno e o governo peruano não tomar nenhuma atitude para coibir este crime ambiental, todo nosso esforço do lado de cá da fronteira terá sido em vão. A grande mata sucumbirá e com ela a fauna, a flora e os povos indígenas isolados desaparecerão. E nós, ditos civilizados, teremos completado a nossa grande obra: o deserto.

O sertanista José Carlos dos Reis Meirelles é chefe da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru.

3 comentários:

Anônimo disse...

Durante a ditadura militar trbalhou-se com a idéia de "integrar para não entregar". Ficou essa idéia de que a internacionalização da amazônia é nefasta. Apela-se para soberanias nacionais. Na verdade o "integrar" se refere a economia de mercado globalizada e nada tem a ver com povs, culturas, ambiente, etc..Na América latina temos um populismo desenfreado com governos meros agentes sem escrúpulos do capital.Por último reedita-se o périplo de Magalhães, cinco séculos depois: todo o globo está ligado, submetido às leis do capital. Basta caminhar pelo terminal urbano de Rio Branco para ver quanta gente em estado de miséria. De outro lado brotam como cogumelos grandes lojas de automóveis de luxo. Somos os tristes trópicos que levi-Strauss mencionou. Esses raros guerreiros como Meirelles nem sequer causam mais vergonha a tantos que perderam a vergonha na cara.

Anônimo disse...

O texto é uma verdade!
Todos os dias nos deparamos com uma chuva de idéias novas e soluções criadas para frear o aquecimento global.Diante de tantas opções para preservar, por que não conseguimos ainda? Por que sempre temos uma concepção de que somos minoria por pensar de maneira coerente e objetivando a melhoria do planeta?
Bom seria se todas as idéias e soluções criadas, fossem na mesma direção ou seja, que todos dessem as mãos e deixassem essa onda de privilégios e preconceitos! que todos aprovassem a idéias boas, que todos colocassem em primeiro lugar a ídéia do próximo, e em seguida a sua, e assim sucessivamente. O bom seria, quando encontrassemos alguém fazendo algo de útil pela humanidade, valorizar e não pegar suá idéia e se valorizar...
Quem é o certo? quem é o maior?
Diante de tantas desgraças contra o nosso planeta, não adianta chamar pelo rei, pelo maior, nem mesmo por Deus! Só resta uma saída chamar nós mesmos a uma reflexão e, começar-mos a trabalhar de mãos dadas, unidos!
Chegou a hora de plantar para poder colher! Acabou a fartura: de água, de árvores, de ar e etc...
Posso estar totalmente errado, por que isso tudo veio de um sonho! as vezes os sonhos são interpretados de maneiras diferentes. Posso estar errado ou certo.

Anônimo disse...

Caro Altino,

Sempre o capital!! de devastador a verdão, sempre o capital!! de agente de defesa do meio ambiente a defensor da indústria petrolífera, sempre o capital!!

Bom trabalho.

Lindomar Padilha