sábado, 2 de fevereiro de 2008

RADIOLA ROUXINOL

José Carlos dos Reis Meirelles


Era o toca disco mais cobiçado nos seringais. Branca e cinza com auto-falante separado por fio, embutido na tampa. Alimentado por oito pilhas “radiovaque”, comia uma ou duas caixas delas por noite, dependendo se a festa fosse até o raiar do dia. Quando o dono da “Roxinó” chegava com pilha boa da festa é que tinha havido briga, de faca ou tiro, dependendo da ocasião e precisão.

Mas a do Chico Celestino, naquela madrugada, tinha ficado na colocação da Lua. O toca disco com um rasgo no prato de se ver os fios do mecanismo, o braço e agulha quebrados e o alto-falante com três furadas de peixeira doze polegadas, largado às pressas em cima da tábua do pote da água de beber que sempre é tirado do canto pra dar lugar à radiola, que mesa em sala de festa num tem. Só tem banco ao redor da sala, no fim da paxiúba batida, nos três cantos da sala que dão pro terreiro. Dois ou três rolos de paco-paco com dois ripões de paxiubão em cima. Quem não dança e senta, fica com o queixo escorado no joelho.

Chico Celestino era das matas do alto rio Iaco. Filho de pai cearense e mãe índia, porte médio, bigode de paca e cabelo preto-azulado de índio. Criado desde cedo no cabo da faca de seringa, se formou seringueiro nas colocações de fim de linha, boas de leite e fartas de caça. Bom caçador, marupiara, arrumou logo mulher e um bocado de meninos.

Naquele final de ano, depois da pesagem da borracha, o Chico foi o tuxaua do seringal. 1580 quilos de borracha! Primeiro lugar. E ganhou do Canízio Brasil, patrão do seringal Petrópolis, como de costume, uma “Roxinó”, estalando de nova, na caixa, como prêmio.

Fez logo um débito danado em pilha e disco de forró! Maior que o valor do prêmio que acabara de ganhar, mas ele não sabia disso. Se soubesse perderia a graça e não haveria festas no centro, movidas a som do melhor, de disco “sem furo, que num fica gaguejando musga”.

A vida do Chico mudou! Nos fins de semana que eram dedicados a rastejar um veado, anta ou bando de porcos, pro rancho da semana que vem, lá ia o Chico, varadouro a fora, estopa novinha e lavada às costas com a Roxinó dentro e os discos. Tudo num saco encauchado, pra não molhar de suor ou chuva. Na mão direita a calibre 16, ponto branco, americana. Cano comprido, juntadeira de chumbo que só. Afamada no seringal por não usar palanqueta, nem pra anta e de não dar dois tiros em caça nenhuma. Tiradeira de macaco preto em olho de pau crescido em lombo de terra. No cinturão de couro de veado, apertando a velha bermuda, que as “carça e a bruza ia dobrada drento da estopa, que ninguém é besta de suá ropa de festa”, curtido com casca de mogno, a boroca de seringa, impermeável com 10 cartuchos de metal dentro, carregados no capricho, “meieiro de porva alefante, socado com bucha de murmurú e tapado com cera de urucu”.

Todo sábado era uma festa. Com uma, duas, seis ou oito horas de viagem. Mas o Chico sempre ia. Não havia como recusar um convite de mensageiro da família que ia dar a festa, chegado na quinta, de dormida, pra de noite, depois da janta, se desincumbir da embaixada de responsabilidade que era portador.

Num fevereiro, sábado de carnaval tinha um festão na colocação do Buraco. Matança de capado, almoço, janta e festança a noite toda. O Chico foi. Três horas de viagem, caminho bom, apesar da lama criada pelo pisotear das tropas de burro, levando mercadoria e trazendo borracha. Logo na saída do caminho no varadouro:

- Txicuammm! A cantiga daquele passarinho do peito amarelo, que não é bem-te-vi, é agourento! O lado índio do Chico voltaria pra casa, se pudesse, pois índio não é nem besta de não dar ouvidos a agouro de pajé. Mas o lado seringueiro foi teimoso e arrastou a banda índia no rumo da festa. Isso sem falar que a 16 malhou um cartucho num porco choco de manso na beira do caminho e o dedão do pé esquerdo recebeu um espinho de taboca que varou o sapato de seringa e entrou, o tanto que um espinho entra, debaixo da unha, na subida de uma terra, justo quando enterrava o dedão nela pra não escorregar.

Chegou no buraco pelas cinco da tarde, manquitolando um pouco, porque espinho de taboca é reimoso que só. O campo do Buraco tinha uns 150 metros até o aceiro da mata. Era lugar de descanso de tropa e tinha dois ou três hectares de capim nativo. Entre a boca do caminho e a casa, uma moita de banana roxa, feito quinta feira no meio da semana, nascida sem consentimento a uns 20 metros da casa, tapava a visão de quem ia ou vinha. Antes de se desviar, o Chico deixou escondida a 20 e a boroca de cartucho.

A função do capado já tava no apuro do torresmo. Os boas de praxe, um copo de água do pote e uma talagada de cachaça, com tira gosto de torresmo quentinho é tudo que o viajante pode querer.

Um banho no igarapé de água fria, mudada a roupa, o Chico ta pronto pra janta, servida por turnos, pois já tem muita gente chegada, de todo centro e margem do seringal. Até Severino e Antonio, da família dos Praxedes da colocação Três de Paus. Gente valente, acabadeira de festa a custa de ponta de faca. E já corria o boato que eles tinham vindo pra acabar com a festa! Mas como na mata ninguém corre antes de ver o bicho, fica o dito pelo não dito, grita o bode, berra o cabrito.

Salão limpo a custa de vassoura de cipó titica, que é só quem tira caroço de farinha de fresta de paxiúba batida, radiola assentada na tábua do pote coberta por um pano alvinho de saco de açúcar, de barra costurada à mão, Chico, todo pigôito, a postos começa a festa. Seringal de muita dama, que a macharada era abatida por mordida de cobra, queda de pé de burro de 15 dentes, de seringueira maltratada e outras armadilhas, que Deus permite e o diabo arma na mata. Quem escapa, de uma hora pra outra morre na peixeira ou no chumbo, nestas festas de fim de semana. Ainda mais nessa, de feriado grande.

Os irmãos Praxedes, cada qual com uma dama dançam, já meio tocados da cachaça ao som de Luis Gonzaga:

- Luuuiz, respeita Januáaariu, respeite os oito baixu du teu paaai.

Acabou a parte e Severino falou alto, pra todo mundo escutar:

- Chico Celestino, coloca de novo essa parte.

Chico, com cuidado coloca a agulha do braço da radiola naquela linhazinha preta que separa a penúltima da última faixa do LP 33 rotações do Gonzagão. A música enche a sala e o pessoal dança. E de novo ao final da parte, Severino, falando cada vez mais alto, pede bis. É atendido. E de novo, ao final pede bis, aos gritos!

-Severino, já ta bom, vou mudar de disco!

Pra que! Severino empurra a dama que se estabaca no piso de paxiúba, ao lado de seu irmão Antonio, que nestas alturas não dança mais, a mão das costas da dama segura uma peixeira doze polegadas, e sem vê nem praquê, fura o disco e o prato da Roxinó do Chico. O irmão lasca o auto-falante do mesmo modo.

- A radiola já foi, agora é tu Chico!

A cachaça dos irmãos deu uma ajuda ao Chico, que ligeiro como só gato salta no terreiro, por cima dos bancos da beira da sala e vai direto à moita de banana roxa. Num instante a 20, com cartucho na broca, está na posição de tiro.

Os irmãos Praxedes, confiados, acharam de descer pela escada de três degraus, escorada no assoalho. Cada qual com uma peixeira maior, desfolhada, na mão. Quando Severino botou o pé direito no terreiro, Antonio tava no segundo degrau.

Chico fez ponto da cabeça de Severino, meio de banda e arrochou o dedo. Tiro seco, de cartucho bem carregado. Metade dos 25 caroços de chumbo 3T arrancaram uma banda da cara de Severino, que caiu morto. A outra metade dos caroços entraram no peito de Antonio e saíram nas costas, que caiu morto em cima do irmão. A valença é que nenhum caroço varado encontrou ninguém. A sala já estava vazia e a parede de paxiúba que dividia a sala da cozinha segurou os caroços, cansados de varar gente.

Chico foi ter mão em casa e noutro dia no barracão do seringal, aonde estas notícias chegam mais rápido que um raio. Foi levado até Sena Madureira, mas bom seringueiro, de morte justificada, não fica preso. Voltou ao seringal Petrópolis.

Na última vez que o vi, há muitos anos, ouvi dele esta história, que já sabia, por boca de outros, na noite que dormi em sua colocação, varando do Seringal Petrópolis para a Vila Assis Brasil, que neste tempo era vila. Perguntei a ele, antes de dormir, se ele ainda ia a festas.

- Nunca mais fui a nenhuma! Até o rádio vendi. De instrumento cantadô só possuo a muié. Assim mermo só na lavagem de ropa no garapé. Cantano baxo e sem repiti parte.

5 comentários:

Unknown disse...

Parabéns Meirelles. "Rosa" dos seringais.

morenocris disse...

Hhhuuummmm deu até saber de notas musicais...vou fazer chamada do post.
Estou no crisblogando.blogspot.com

Beijos.

morenocris disse...

"sabor"...ouvir as músicas. Altino, interessante como ele absorve o linguajar próprio do lugar. O Pará possui 143 municípios. Em um desses, certa vez, trabalhei em uma campanha política, durante dois meses. Sabes qual foi a minha dificuldade maior? Entender o significado das palavras utilizadas. A comunicação entre eles. Cultura maravilhosa. A minha sorte que o cinegrafista entendia tudo e ia me traduzindo, pode? Pode! Ô mundão! E você sabe que verifiquei algumas palavras e para minha surpresa, ainda são do latim original, puro? Pois é...pra vc vê! vivendo e aprendendo!

Beijos.

leãdro disse...

parabéns pela história!
faz tempo que ñ tomo contato com hstórias de bravura e valentia, só quando meu avô era vivo lá em "taruacá".
ah! tenho uma "roxinó" dessas.

Unknown disse...

Essas histórias da Amazônia dos tempos dos seringais sao de fato fascinantes. Me trazem fortes lembranças do meu avô.que saiu do nordeste muito moco. Viveu sua vida nos seriais e jamais voltou a sua terra. Faleceu no Acre em 1993 aos 89 anos.