sexta-feira, 2 de maio de 2008

BOA SORTE AO USAR KAMBÔ

Leonardo de Azevedo Calderon

A morte de um empresário em Pindamonhangaba (SP) levou a mídia a abordar mais uma vez, de maneira superficial, a prática do kambô e o problema de sua disseminação em grandes centros urbanos do Brasil e do Exterior, especialmente no contexto da “medicina alternativa” e do “xamanismo”.


A prática da aplicação da secreção cutânea do "sapo kambô" (Phyllomedusa bicolor), também conhecida como “vacina do sapo”, e sua origem nas tribos indígenas na Amazônia Ocidental são fatos bem descritos, com farto material disponível na internet, além de artigos científicos. O kambô constitui-se em uma alternativa em saúde de comunidades indígenas desta região, mas vale a pena ressaltar que a Phyllomedusa bicolor não é um sapo.

A difusão da prática indígena, antes restrita a pequenos grupos populacionais amazônicos, agora está presente em centros urbanos, possibilitando o surgimento de casos com conseqüências graves, como o ocorrido naquela fatalidade no interior paulista.

A história da farmacologia está recheada de casos onde os efeitos adversos e colaterais de drogas foram conhecidos quando estas passaram a ser utilizadas por um número cada vez maior de indivíduos. Devido ao aumento de situações fisiológicas e/ou patológicas para interação com a atividade das drogas, essas provocaram diversas seqüelas e óbitos, alimentando inúmeros processos contra a indústria farmacêutica mundial, o que contribuiu para consolidar os rígidos critérios de desenvolvimento e validação de drogas para uso humano.

Este fato trás a oportunidade de se fazer uma reflexão crítica àqueles que estão disseminando o veneno da P. bicolor por ingenuidade, ignorância ou ganância. A maioria acredita que a resolução nº 08, de 29 de abril de 2004, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que proíbe a comercialização e difusão da prática, seja embasada apenas em preconceito contra as “terapias alternativas” e a “medicina da floresta”. Mas o próprio protocolo de aplicação da vacina possui algumas características que proporcionam risco aos seus usuários, especialmente as condições questionáveis de higiene.

Falta higiene e estudo
Um dos requisitos mínimos para a realização de uma inoculação segura está nas condições assépticas do local de aplicação e daquilo que será inoculado. No caso do veneno do kambô, realizamos um ensaio grosseiro no laboratório de prática das disciplinas de química e bioquímica do Campus da Universidade Federal do Acre em Cruzeiro do Sul. Obtivemos a doação de uma amostra do veneno, por sua vez obtida por um aluno de um “pajé branco”, e a deixamos em um tubo estéril e transparente que permaneceu fechado sobre a bancada à temperatura ambiente por uma semana. Após este período, foi possível observar o crescimento de fungos filamentosos na amostra, o que denuncia seu estado de contaminação. Vale a pena ressaltar que o referido aluno havia realizado o ritual de aplicação da “vacina do sapo” com material de onde se originou a nossa amostra, para o seu azar.


Outro fator agravante reside no fato de que o veneno é aplicado em sua forma bruta, ou seja, possui em sua constituição uma mistura de moléculas bioativas diferentes, e em grande parte desconhecidas e/ou não completamente caracterizadas, que serão inoculadas de uma só vez, penetrando através da abertura da pele, provocada por um cipó em brasa ou canivete, até os capilares sanguíneos, de onde serão distribuídas para diversos órgãos e tecidos alvo.

Mesmo depois de mais de 30 anos de pesquisa científica com a secreção cutânea da P. bicolor, que iniciaram-se em meados dos anos 70 com os trabalhos realizados pelo grupo de Vittorio Erspamer, pioneiro no estudo do conteúdo de peptídeos bioativos de Phyllomedusas, ainda não é possível afirmar que todo o conteúdo de moléculas bioativas do veneno da P. bicolor está descrito.


Atualmente, está descrita a presença de várias moléculas bioativas, da classe dos peptídeos na secreção cutânea de P. bicolor, relacionadas a seguir, acompanhadas de suas possíveis versões em português: adenoregulin (adenoregulina); calcitonin (calcitonina); deltorphin (deltorfina); dermaseptin (dermaseptina); dermatoxin (dermatoxina); dermorphin (dermorfina); phyllomedusin (phyllomedusina); e phylloxin (phylloxina), segundo o site do National Center for Biotechnology Information.

Luz no fim do túnel
A partir da caracterização da atividade biológicas destas moléculas, é possível correlacioná-las com os fenômenos fisiológicos observáveis durante o ritual do kambô, como a sensação de prazer provocada provavelmente pela deltornifa e a dermorfina - peptídeos com afinidade a receptores opioides, e uma das razões pelas quais muitos insistem em fazer uso repetitivo da vacina. No entanto, são apenas correlações possíveis, ainda há a carência de estudos fisiológicos e de toxidade para as moléculas bioativas conhecidas da P. bicolor, como ensaios de potencial tóxico a diversos tecidos, como nervoso, cardíaco, hepático, pulmonar, renal, entre outros, quiçá as moléculas ainda não descritas.


Mas se não fosse o bastante, a P. bicolor é facilmente confundida com outras duas espécies que coexistem na mesma região, a P. tarsius e a P. vaillanti, que possuem morfologia semelhante. Para leigos e profissionais despreparados, parecem apenas a mesma espécie em estágios diferentes de crescimento, o que pode acarretar obtenção do veneno da espécie errada para formulação da "vacina", provocando efeitos não esperados. Quanto ao conteúdo de moléculas bioativas presentes em suas secreções, ainda muito pouco se sabe.

Seria extremamente reconfortante afirmar que existe uma “luz no fim do túnel” e que há um grande interesse da comunidade científica nacional para o desenvolvimento dos estudos necessários que possam garantir uma possível segurança aos usuários da prática do kambô. No entanto, o que se observa é exatamente o contrário. Cada vez mais os pesquisadores do nosso país estão se afastando de pesquisas relacionadas ao “conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético”, o que se agrava quando está associado a conhecimento indígena.

Por que nossos cientistas estão se afastando, enquanto o interesse internacional aumenta? A resposta é simples: a extenuante burocracia criada com o objetivo de regulamentar e regular as pesquisas sobre patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, que exige a obtenção de uma licença para a execução do projeto e uso de financiamento, onde o pesquisador nacional terá de procurar o IBAMA, o CGEN, o ICMBio e/ou FUNAI. Como se não bastasse, os funcionários destes órgãos terão de se entender para que o processo ande, enquanto o pesquisador perde mais de um ano. Vale a pena ressaltar que o pesquisador estrangeiro não precisa passar por este sufoco, pois não depende de financiamento do CNPq ou da FINEP, como o pessoal da casa.

Ou seja: quem está disposto a sacrificar seus alunos de iniciação científica (execução em um ano), mestrado (execução em doi anos) ou doutorado (execução em quatro anos) em um projeto que vai levar anos para poder ser iniciado? A resposta é: nenhum pesquisador experiente ou em sã consciência.

Medos e perigos
Desta forma, os grupos de pesquisa competitivos não irão se aventurar em uma enrascada. Como vão manter o nível de produtividade exigido pelas agências de fomento, como a CAPES e o CNPq, que pontuam os pesquisadores e cursos de pós-graduação onde estes estão envolvidos, se forem obrigados a passarem mais de um ano parados por causa da burocracia? Como manter as bolsas dos alunos e pesquisadores, o financiamento de material de consumo e permanente, a manutenção do laboratório, se o pesquisador corre o risco de ser processado ou ir para a cadeia por acesso ilegal ao patrimônio genético?


Para piorar, existem aqueles que querem fazer o mesmo tipo de regulamentação com a nanotecnologia, por causa do “medo” e dos “perigos” que a ciência pode trazer. Pois bem, por causa do medo, livros e mulheres também eram queimados em fogueiras.

Então, para aquele que pretende fazer uso do kambô, um alerta: você tem que ter consciência de que estará em situação de risco e não há garantia de segurança. Saiba, ainda, que não há nenhuma ação governamental para tornar esta prática segura, e, adicionalmente, se há algum microorganismo crescendo no veneno, ele é resistente aos antimicrobianos ali presentes, o que pode tornar os bioativos do veneno um problema pequeno se comparado à instalação deste microorganismo em seus tecidos internos.

Boa sorte!

Leonardo Calderon é doutor em biologia molecular e professor de bioquímica do Campus Floresta da Universidade Federal do Acre em Cruzeiro do Sul. A foto que ilustra o artigo foi cedida gentilmente ao blog pelo doutor Paulo Sérgio Bernarde. Em breve vou entrevistar o pajé Bira Yawanawá, cuja tribo faz uso secular do kambô, e que manifesta preocupações que reforçam o alerta de Calderon. Existe gente ganhando muito dinheiro com a aplicação da secreção do sapo até em clínicas das grandes cidades do país. Alguns fanáticos chegam a associar a substância com a ingestão de ayahuasca. Mais um desafio para as autoridades brasileiras. Clique aqui para ler mais sobre kambô neste blog.

4 comentários:

Unknown disse...

"Por que nossos cientistas estão se afastando, enquanto o interesse internacional aumenta?"

Pergunta oportuna. Entretanto, resposta inadequada por evitar aspectos bem mais poderosos na determinação dos rumos da pesquisa, seja no Brasil, seja no resto mundo.

Talvez, fosse, até mesmo, possível perguntar por que nossos cientístas, alguns pelo menos, trilham caminhos diferentes? Aí veriamos quantos se deslocam, depois de anos de formação e qualificação por conta dos recursos públicos, para o campo da atividade privada.

O esaço é curto e o tempo menor aínda. Por isso, uma indação a propósito do assunto: qual a raiz dessa tendência de patenteamento de "termos", vocábulos de determinadas línguas? De uma hora para outra, vemos termos como "cupuaçú" ser de uso exclusivo de algum japonês.

A pesquisa está perpassada pelos interesses de grandes corporações e, no caso dos remédios, é uma situação que chega aos limites do comportamento criminoso. Os grandes laboratórios realizam programa produtivos, exercem o direito de patentes de princípios ativos, sufocam elementos de demanda, absolutamente em função da sua lucratividade.

Sem nenhuma dúvida, quando falamos de "remédios" alternativos, remédios de base natural - ou retirados da natureza e usados na sua forma bruta - falamos, também, de um longo processo histórico de afastamento da natureza. Este afastamento é intensificado e posto a serviço do lucro. É resultado deste afastamento que o comportamento atual das sociedades, negando a validade dos remédios resultantes das práticas prmitivas e a afirmação dos remédios de base sintética como única droga capaz de curar as doenças. Há um batalhão imenso de difusores dessa visão - há uma poderosa ideologia pondo-se como mecanismo da reprodução do capitalismo.

Pouco se diz sobre a forma emperrada como se conduz a pesquisa e a prática do pesquisador, quando lançamos sobre as costas da regulamentação e dos burocratas a culpa dos descaminhos. Olhemos com mais cuidado para o funcionamento do próprio sistema, procuremos ver como andam os interesses comerciais em torno do tema da pesquisa.

Anônimo disse...

Um texto coerente e inteligente, coberto de conhecimento relacionado ao "kambô". Talvés não tenha explorado tudo sobre o assunto, mas, foi o suficiente para esclarecer aos leigos, como eu, os critérios e formas de aplicação da "vacina do sapo".

Foi de grande importância ter mencionado no que se refere a "falta de higiene e estudo", até como forma de alertar a população "curiosa" dos riscos que podem vim a sofrer por meio de uma aplicação errônea, como até mesmo foi citado no texto, que profissionais despreparados podem obter o veneno da espécie errada e assim provocar efeitos não esperados. No que se refere a “luz no fim do túnel”, “medos e perigos”, temos que ser realistas, pois quem realmente estará disposto a passar por tanta burocracia e esperar anos para que seu projeto seja iniciado, enquanto o mundo busca e exige cada vez mais rapidez e eficiência do ser humano?

Unknown disse...

Muito bom.


Expôs os fatos com a rigidez necessária que o caso exige.

Dennis Garcia disse...

E todas essas curas relacionadas ao Kambo? eu por ex conheco pessoas que tomaram, e pude observar melhor disposicao no dia a dia, aumento de forca, aumento no libido, e realmente pareciam pessoas muito mais saudaveis do que antes do kambo.
E fora outros relatos de cura de uma infinidade de doenças.
Nao estou defendendo, mas sera que a ciencia que s'o avançou 4% 'e mais confiável do que a sabedoria da observação e dos resultados?