sexta-feira, 10 de abril de 2009

A LUTA CONTRA UMA PALAVRA

Moisés Diniz

A deputada Perpétua Almeida convidou a intelectualidade acreana para discutir a mudança do Acordo Ortográfico, entre os países de língua portuguesa, que determina o gentílico acriano para quem nasce no Acre. À primeira vista pareceu uma luta inglória. Depois se agigantou. Descobrimos que lutar contra a adulteração de nossa memória lingüística, mesmo que seja através da legalidade científica, é uma tarefa de todos os acreanos, independente de cátedra, opção política ou credo.

Acho que a luta contra uma palavra é uma guerra mais árdua do que um combate contra um país. Pois, muitas vezes, um país não luta como nação, luta como soldado, como mercenário e sem nenhuma paixão. A luta contra uma palavra não é uma luta qualquer. É como juntar os anjos na terra e os demônios no céu, pois uma palavra pode destruir uma fortaleza, aniquilar uma nação.

Corno! Pedófilo! Ladrão! Dito a muitas vozes já destruiu famílias, cargos públicos, propriedades e biografias. Acriano! Uma palavra é uma serpente de fogo, um vulcão indomável, uma tempestade, um deus do mal. Uma palavra pode mexer com tudo que um homem cultivou, sua história, seus valores, seus afetos. Não brinquem com as palavras. Elas podem ferir muito mais do que uma palmatória de fogo, uma lâmina de sal.

Por isso, não vamos brigar com nós mesmos. Nós escrevemos acreanos há quatro gerações e não temos culpa se o Acordo Ortográfico demorou um século para se efetivar. Não vamos brincar com a palavra que foi escrita por nossos pais. Eles não estão mais aqui para dela cuidar, ficar valente com quem queira adulterá-la, brigar por ela. Eles estão, todavia, pensando e escrevendo por nós.

Nesses dias descobri que o Acre é, de fato, um lugar especial. Surpreendente como o nosso povo discute os assuntos que lhe dizem respeito, mesmo que problemas mais básicos não tenham ainda sido superados. O jovem desempregado, o homem sem casa própria, a mulher na fila do hospital ou o ancião na ponta da rua aonde o asfalto ainda não chegou. Eles estão discutindo a beleza do acreano e o incômodo do acriano, mesmo sabendo que este último é o filho verdadeiro da língua.

Aqueles que andam sempre na rua de baixo, mesmo que assinem um dr antes do nome, vão questionar porque nós não estamos tratando dos problemas básicos do povo, como educação, saúde, emprego, moradia, transporte e saneamento. Vão, talvez, perguntar porque não estamos questionando os parlamentares semi-analfabetos que se elegem ou aqueles que resvalam para a corrupção.

Não perderemos tempo com esse assunto. O Acre é pequeno e todos se conhecem. O que vamos fazer é defender um ponto de vista: a nossa história como povo é mais importante do que a história da língua e esta não pode suprimir a história da palavra, que tem um mundo ao redor, um ritual, com dores humanas e alegrias, sentimentos coletivos e até revoluções.

Eu escrevo puraquê, nos tratados e nos concursos, e falo puraqué na rua. Eu escrevo bacuri e alimento o bacurim, sou picado pela tucandeira e escrevo tocandira, caço uma nambu e escrevo inambu, exconjuro a côa e escrevo acauã, há cem anos, às margens dos igarapés, nas casas de palha e de alvenaria. Eu falo acriano e escrevo acreano. Nós nunca brigamos, nesses cem anos, para que o Brasil ortográfico mudasse essas palavras criadas pela voz rouca de nossos pais.

Acreano é muito mais do que um adjetivo gentílico. Acreano é um personagem indígena, nordestino e revolucionário. Sua idade é de um século, sua pele é queimada pelo sol amazônico, marcada pelos insetos da floresta e suas mãos ainda têm a marca e o odor da pólvora de nossa revolução. Nossa história exige que, mesmo que insistam alguns doutores da ortografia, o mapinguari e a caipora nunca se tornem acrianos. Se o coração humano bate a cada segundo, o personagem acreano tem três bilhões de pulsos, mais cento e dez milhões e quatrocentas mil batidas de um coração.

Por que o Acordo Ortográfico está nos impondo o acriano como adjetivo gentílico? Em linguagem simples dá para compreender o fenômeno morfológico que ocorre com a palavra ‘Acre’. A sílaba tônica é ‘A-cre’ e, dessa forma, por ser átono o -e- de ‘Acre’, ele não permanece no radical da palavra derivada, havendo a vogal de ligação -i- para acomodar o radical ‘Acr-‘ ao sufixo ‘-ano: ‘acriano’. O fenômeno morfológico que determina o gentílico acriano não levou em conta que o uso consagra a forma, apesar do saber erudito, suas regras morfológicas e a história da língua.

Continuaremos a ter a mais indiscutível deferência a eruditos gramáticos como Antônio Houaiss, Aurélio e Celso Luft que consagraram o uso acriano, junto com a forma acreana. Mas, continuaremos lutando pela manutenção de nossa tradição secular de sermos grafados como acreanos. Imagine quem nasce na Coréia ser chamado de coriano, por causa de uma lei morfológica, que se sustenta numa intrincada engrenagem erudita de sílabas tônicas ou átonas e vogais de ligação.

O filólogo Evanildo Bechara, titular da Academia Brasileira de Letras, diz que, apesar de respeitar nossa resistência cultural, acreano com ‘e’ é um erro de história da língua, uma espécie de mentira morfológica. Se acreano é uma mentira morfológica, permaneceremos nela, porque é uma mentira contada por todo o povo, durante cem anos. E mentira que é contada por todo um povo, durante um século, deixa de ser mentira e passa a ser verdade histórica. E a história se torna palavra, como o Verbo que se fez carne ou a palavra que se fez luz.

E não foi acriano que da história e da revolução nasceu. Não foi acriano que surgiu das mãos valentes de Plácido de Castro e nem do seu sangue inocente. O general Pando não sofreu o vexame da derrota para os acrianos e nem o Tratado de Petrópolis deles se ocupou. E acrianos não são os filhos de Chico Mendes. Por que queimar milhares de cartas que chegavam do árido sertão, onde as mulheres amadas de nossos avós suspiravam e diziam: chegará o dia em que partirei e, às margens de um lago na bela terra acreana, eu te amarei.

A evolução lingüística não se faz por decreto, como se pudesse um pai fazer um acordo com outro pai sobre o amor e a paixão dos seus filhos. Ela está sujeita a leis históricas inexoráveis. O tupi foi proibido através da lei e as línguas indígenas foram abandonadas pelas próprias aldeias, a partir da vontade imposta pelo homem branco. Mas, nem a lei e nem a vontade branca mataram a história e a vida das línguas indígenas, sua sonoridade, seus significados milenares e sua afetividade.

O gentílico acreano originou-se do Aquiri (forma pela qual os exploradores da região transcreveram a palavra uwakuru, do dialeto dos índios Apurinãs). E nunca é demais lembrar que, antes dessa terra ser conhecida e explorada pelo homem branco, as coisas do mundo amazônico já possuíam nomes para designar o lugar, como os rios, as planícies, os lagos, os animais, as plantas. O acreano já existia antes do Acre, como uma profecia no imaginário indígena.

A chegada do homem branco deu início a um processo de aniquilamento físico e esfacelamento do universo cultural, de seu mundo lingüístico, e da organização econômica. Por isso, como uma nova esquadra de navios mercantes, a chegada desse novo acordo ortográfico assusta os acreanos e sua secular teimosia morfológica. É que nós temos passado. A árvore genealógica do Acre está viva. Nossos antepassados mais distantes ainda têm os seus nomes gravados em seus túmulos. Nosso passado é tão forte que se mistura ao presente, como o abraço de uma avó e a travessura de um bisneto.

E vamos continuar assim, apaixonados pela água da chuva, o barulho do vento, a dança indígena, a paz das aldeias, o amor ritual, a paixão acreana. É que vai ficar muito ruim a gente escrever uma poesia sobre a revolução acriana e não vai dar para mudar o verso do hino que fala do sol amazônico que ‘enche’ o peito de cada acreano.

Moisés Diniz é deputado estadual do PC do B

12 comentários:

ALTINO MACHADO disse...

Ao comentarista que assina como Paulo: vou liberar seu comentário após você se identificar para que possa responder plenamente pelo mesmo.

Jalul disse...

Meu querido camarada Moisés, nesta e noutras questões, estou com você e não abro. Divergimos, evidentemente, na questão fuso horário. Há quatro gerações vivíamos nele e nunca ninguém deixou de nascer, viver, comer e trabalhar, até que, de forma impositiva e decerto também vinda de cima para baixo, em obediência à Rede Globo, fomos obrigados a alterar nossas vidas de forma considerável para uns e nem tanto, para outros.
Se for possível, se lhe interessar possa, leia minha crônica A RUA DA FRENTE. Está no livrinho SUINDARA, não sei se disponível na Nobel ou na Paim. Se não, Altino pode emprestar.
Veja, camarada Moisés, no meu batistério, na certidão de crisma, no RG, no livro dos casamentos e nos cartórios sou acreana e fim de papo, espero que até o óbito.
Meu coração e minha impaciência mandam que crie uma postura irredutível com relação à nova forma de grafar minha naturalidade. Que se danem os filólogos que não respeitaram o nosso patrimônio. Serei desobediente civil com consciência, tanto quanto estão sendo desobedientes 70% dos donos do idioma. Há um movimento correndo em Portugal contra este acordo. Intelectuais e linguistas irão aos tribunais, movimento que deverísmos começar de imediato, antes que se crie o gosto da aceitação passiva, não acha?
Depois a gente se fala mais. Conte comigo!
Carinhos procê.

Leila

VÍTOR FARIAS disse...

Novamente isso! Duas ponderações: na primeira, digo que é lindo o discurso, cheio de ideais que todos nós conhecemos e sabemos bem qual é o nome... Mas, não convence. Ainda é apenas falácia. Em comentário anterior, questionei o interesse de nossos políticos por questões mais importantes e urgentes. Eles também foram lembrados aqui, no texto do deputado MOISÉS DINIZ, mas sabemos que não sairá disso, serão apenas lembranças. Eu descobri há muito tempo que o Acre é um lugar especial, não o melhor para se viver, mas especial, e poderia ser melhor se, quem pode mesmo, fizesse mais. Segunda ponderação: ainda por quanto tempo veremos a estrada que liga Rio Branco à Cruzeiro do Sul ser fechada em época de chuva? Alguém, por favor, me responda quanto tempo vai durar a aflição de quem mora a beira do rio que corta nossa capital e tem que abandonar suas casas quando as águas sobem. Pondero assim para lembrar que, de fato, existem coisas mais urgentes para se discutir e cuidar. Sei que as que apresentei aqui, embora já conhecidas e desgastadas, demandam muito mais que discussão e elas já forma feitas, agora é hora de agir. Conclamem-se os intelectuais acrianos (acreanos, perdão) para propor soluções. Quero se o primeiro da fila, o primeiro a falar, o primeiro a agir e o primeiro a sair da sala de reuniões quando o que for discutido não for de fato de interesse de todos e, como se diz por ai, para todos. Acreano? Acriano? Nenhuma casa foi construída e o asfalto não brotou do chão ao dizer essas palavras...

Grupo de Choro Afuá disse...

Só reuniram intelectuais a favor do "acreano". pois os verdadeiros intelectuais estão querendo mesmo é quebrar paradigmas e não se paralizar no tempo. Se for para ser "acreano" e fugir da regra geral, tudo bem, mas isso não seria quebrar paradigmas, pois todos já são acostumados com o gentílico "acreano, quero ver agora se acostumar com o novo, com o estranho "acriano". Que seja então as duas formas. Defendo as duas, mas o verdadeiro povo acriano,pronuncia acriano. Seria tão bom se a língua escrita se aproximasse da língua falada.

Acreucho disse...

Uma reunião de intelectuais, deveríamos reunir o povo, pois, é o povo que importa. Um parlamentar dito "do povo", deveria se preocupar com a opinião do povo.
Espanta-me na realidade a veia poética do Deputado Moisés Diniz, mostra-se sábio e inteligente, discorrendo sobre a gramática como um cátedra, evocando o "espírito acreano", e despertando a sensibilidade do povo.
Pena a gente saber que todo esse afã, toda essa "ira" incontida, todo esse furor poético e patriótico, da mesma maneira que é usado pra fazer poesia não seja usado para defender os interesses do povo, em seu labutar na casa parlamentar a que pertence, ao invés disso, defende com a mesma paixão os interesses dos poderosos que governam esse Acre.

Grupo de Choro Afuá disse...

Veja o que o intelectual Marco Antônio fala sobre acriano:

http://www.agencia.ac.gov.br/videos/?p=1846&cpage=1#comment-72

Concordo completamente com o Marco Antônio, ele defende a linguística aplicada, sobre essa questão apoia o uso cognitivo da língua, o aprimoramento da capacidade comunicativa do falante, a interação; e não ficar decorando regras ortográficas ou gramaticais, pois o aluno desenvolverá a capacidade comunicativa usando a língua em diversas situações;não somente decorando regras puristas, isso significa que o importante é o uso da gramática interior. Concordo completamente com a afirmação que um Estado tem que aparecer pela economia, não pela sua língua. Que seja então acriano e nos preocupemos mais com o desenvolvimento econômico do que com apenas um gentílico "acreano", faremos luta não por uma palavra, mas contra a corrupção.

MOISÉS DINIZ disse...

Eu respeito a opinião de quem combate o governo que eu defendo. Agora não me venham com o velho discurso de que eu sou omisso como parlamentar e não posso discutir temas como esse.

Daqui a pouco vão me proibir de ser solidário, de ter uma opinião filosófica.

O que eu acho mais sórdido é alguém discordar do meu ponto de vista a partir, não de outro ponto de vista, mas de um ataque à minha opinião política geral.

Isso significa uma profunda fragilidade no debate político. Na Aleac, quando a oposição envereda por esse caminho, costuma sair fragilizada...

Acreucho disse...

Segundo o professor Marcos Brandão, 209 milhões de pessoas, em 8 ou 9 países no mundo falam e escrevem a língua portuguesa, seja de Portugal ou do Brasil.
Como sempre o Brasil foi fraco na discussão do assunto.
Já que são 209 milhões de pessoas que falam portugues e o Brasil tem 190 milhões de habitantes, a grafia que deveria ter prevalecido seria a nossa e não a dos outros que são muito inferiores em número. Países inclusive onde grande parte da população nem escreve ou lê nada, onde o analfabetismo é muito maior que no Brasil.
Posso até mudar meu jeito de escrever algumas palavras, mas, acho que o Brasil poderia ter-se imposto como fêz Portugal. Na realidade o melhor seria que cada um ficasse com suas características induviduais de linguagem e não um país como o Brasil ser obrigado a render-se às vontade dos outros. Se houvesse um acordo teria que ser para que os "outros" escrevessem como nós, democraticamente, já que somos maioria. Numa democracia, a maioria sempre vence. Quanto ao Acreano ou Acriano acho que é muito mais um problema de vontade de cada pessoa, eu vou continuar a me expressar "acreano". Acriucho ficaria ridículo!

lingualingua.blogspot.com disse...

Escrevi um texto sobre esta questão de forma profunda, bem antes de o professor Bechara ser entrevistado.

Sem citar meu nome, o deputado Moisés repetiu o que escrevi, por exemplo, "mentira morfológoca".

Aos deputados acrianos, digo-lhes o seguinte: lutem na Assembleia Legislativa por um Acre justo, lutem por uma escola pública melhor. "Acriano" ou "acreano" não é da competência de suas sessões, mas da escola. É a escola, com bons professores, que ensina a escrever.

Paulo Henrique disse...

"Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais..."
(Caetano Veloso)

Paulo Henrique disse...

"Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais..."

(Podres Poderes - Caetano Veloso)

Janu Schwab disse...

Acriano é feio pra caramba. Mas será que vale a rinha? É só continuar grafando acreano, como continuam a conjugar o mim e/ou gerundios. Portanto, como é moda da casa, 'vou estar continuando' por cima do muro.