segunda-feira, 29 de março de 2010

O REENCONTRO DA INFÂNCIA

Armando Nogueira

O sol nasce pra todos, diz o provérbio. Não é uma verdade irrefutável, mas todos fazemos de conta que é. Não custa nada a criatura - acordar, cada dia, com a esperança de que vai chover na sua horta.

Na hora de fazer o balanço do ano - que passou, a voz mais ouvida é a do alivio: 2003 já foi tarde! Poucos rendem ao tempo recém-findo uma palavra de gratidão pelas coisas que poderiam ter sido e que acabaram sendo.

No meu caso pessoal, não me lembro de outro ano mais generoso na minha vida adulta. Não ganhei no bicho, sequer tentei a mega-sena, não cai nas graças de ninguém. Só não diria que passei em brancas nuvens porque a imagem não faria justiça ao doce enlevo de tantos vôos, meu aviãozinho e eu, a triscar estratos de algodão pelo céu de tantas rotas.

Foi um ano de reencontro. Viajei ao Acre, minha terra querida. Revi - a gameleira secular em cuja sombra afetuosa transcorreu a parte melhor de minha infância.

Um dia, eu era o próprio Leônidas, o "homem de borracha" fazendo gol atrás de gol, na Copa de 58. Só não fazia gol de bicicleta pra ninguém achar que estava exagerando. No dia seguinte, eu trocava de pele. Vestia a túnica de general ateniense e, sob o mesmo nome de Leônidas, estava derrotando o exército persa, nas batalhas do desfiladeiro das Termópilas.

Passei horas de uma madrugada, em Rio Branco, a relembrar a voz gasguita do poeta Juvenal Antunes, na frente do Hotel Madrid, declamando, aos berros, seus poemas de amor: "Perdoa, Laura, o meu atevimento/Lê esta carta, rasga e solta ao vento."

Tinha eu, se tanto, dez anos de idade. Matava aula pra ficar ouvindo o canto de um poeta enfeitiçado, a quem devo a descoberta de duas paixões. Venerei Laura em cada verso que o bardo recitava à beira do rio Acre. Amor sem corpo, abstração de um poeta de água doce.

A segunda descoberta foi o meu súbito amor pela palavra. Juvenal Antunes apurou meu ouvido pra magia da palavra. Ele alternava cânticos de êxtase e de irreverências: "Bendita sejas tu, preguiça amada/Que não consentes que eu me ocupe em nada."

Aprendi com ele que a preguiça é um nobre sentimento que habita o coração dos poetas. Preguiça, teu verdadeiro nome é contemplação.

Na viagem que fiz ao Acre, fiquei amigo do governador Jorge Vianna, um moço que está fazendo na minha terra uma revolução sem armas. Sublimação da epopéia acreana em que uma geração de seringueiros anônimos morreu na floresta pela cívica teimosia de ser cidadão brasileiro. Não é uma simples retórica de poeta o verso do hino acreano: "Fulge um astro na nossa bandeira/que foi tinto com sangue de herois." Correu sangue, de fato, nos combates de ferro e fogo contra o exército regular da Bolívia.

O neologismo florestania, em lugar de cidadania, é uma bolação de Jorge Vianna, inspirada, certamente, nos ideais de Chico Mendes, cujo martírio converteu-se em bandeira da floresta.

Visitei Xapuri, cidade em que nasci. Reencontrei, confluentes, em doce comunhão, os rios Acre e Xapuri, cúmplices ambos de um remoto devaneio que os anos acabam de me trazer de volta, íntegros. Águas silenciosas que nunca choraram por mim. Nelas, nada mudou. A fluidez é a mesma; mesmo é o remanso, em cujo vagaroso rodeio, até hoje, voltejam as minhas essências.

Louvado seja 2003, o ano que me devolveu a minha infância.

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